Dentro do Festival Interação e Conectividade IV ( Junho de 2010), três jornalistas e pesquisadores de dança ( Chris Galdino( PE), Carlos Santos ( Caixias do sul) e Joceval Santada ( BA) ) ficaram a cargo de acompanhar todas as apresentações do Festival, cada um ficou com três trabalhos para escrever.
Chris Galdino escreve sobre o meu trabalho ” Como superar o grande cansaço?” que saiu no I-dança 15710
NIETZSCHE POR FUKUSHIMA: O CANSAÇO TRANSFORMADOR
Christianne Galdino escritosdedanca.blogspot.com
Ter fé é dançar à beira do abismo – sentenciou Nietzsche no final do século XIX. E como seria essa arriscada dança dos crédulos, imaginada por ele, hoje, no futurista século XXI? Mesmo sabendo que o filósofo estava usando uma metáfora, foi inevitável para mim, depois de assistir ao mais recente trabalho do bailarino paulista Eduardo Fukushima, não fazer uma associação imediata à famosa frase. Partindo do seu próprio corpo, e provavelmente das suas crenças e descrenças, Fukushima decidiu não ficar somente à margem, na iminência de, à beira do abismo… Ele mergulhou no seu próprio abismo, e dessa queda voluntária e intencional trouxe sua dança. Caído no abismo, o bailarino começou uma viagem exploratória, uma expedição pelos seus gestos e movimentos para ver o que naturalmente permanecia. O que se incorporava. O que era seu. Usou o que o seu corpo conhecia para descobrir o que não conhecia, expandindo os movimentos que já havia experimentado em fases anteriores da pesquisa. Nem teorias nem temas, somente o corpo e essa vontade de autoconhecimento guiam esta sua busca como intérprete criador há pelo menos quatro anos, sendo ponto de partida e chegada de três solos e item principal do seu processo criativo. E por falar em processo – atual palavra-vedete dos eventos, editais e discursos da dança contemporânea – seu trabalho mais recente, Como superar o grande cansaço? (2010), aproveita bem a natureza inacabada dos processos, abrindo uma janela e mostrando pra gente em tempo real essa pesquisa em curso. Os improvisos diários feitos na sala de dança chegam ao palco, mantendo a cara de ensaio. A escolha de um figurino casual, a ausência de cenografia, iluminação simples, e a forma de iniciar e finalizar o solo ajudam a estabelecer o caráter processual.
Em cena, vemos um bailarino aparentemente exausto insistindo em se cansar mais e mais, e parecendo nunca chegar ao esgotamento total. Fukushima partiu de seus depoimentos pessoais, das situações/condições do seu corpo, suas aflições e deficiências e foi levado literalmente ao chão, mas não ao fundo do poço, e sim a um solo fértil que vai florescendo novas possibilidades coreográficas a cada toque. Cobrindo o chão de movimentos fragmentados, martelando todo o espaço ora com as pernas, ora com os cotovelos ou a cabeça, ele descobriu seus cansaços, físicos, psíquicos, existenciais. A trilha sonora, criada pelo próprio Fukushima em parceria com Felipe Ribeiro e inspirada em improvisos de Henrique Iwao, Mário Del Nunzio e Jean Pierre Carón, reforça as marteladas, parecendo indissociável da movimentação. Ele trata então de preencher todo o espaço com essa cansativa partitura, mas o que poderia ser motivo de desistência se transforma em insistência de movimentos e gestos. Qualquer semelhança com os estudos do cansaço e a transvaloração proposta por Nietzsche não é mera coincidência. A inspiração veio do filósofo mesmo, mais especificamente das discussões sobre o niilismo, onde Fukushima descobriu a vontade de potência, o niilismo ativo como caminho para sua dança e sua vida, tal como Nietzsche, que somente na enfermidade diz ter encontrado a razão. A sensação que tivemos é que quanto mais cansado o bailarino ficava, mais dança conseguia gerar. Assim foi até mais fácil entender a vontade de potência e o niilismo ativo de Nietzsche, vendo essa ideia incorporada no cansaço produtivo de Eduardo Fukushima.
Apesar do caráter biográfico confesso, a dança do jovem criador não tem pretensões de expressar ou narrar acontecimentos ou sentimentos, não quer contar histórias nem defender identidades. Ao contrário disso, ele tenta apagar o sujeito que executa a dança para a dança se tornar o assunto. Bebendo em fontes filosóficas e voltando todas as suas atenções de pesquisador para questões corporais, Fukushima encontrou um cansaço que não é sinônimo de entrega/desistência, que não se acomoda, que é impulso transformador; convertendo em movimento o niilismo ativo de Nietzsche. E como em uma sessão de hipnose, a repetição de sequências acaba levando o público a embarcar naquele estado, participar do processo, e experimentar o cansaço ali exposto e sua vontade de potência intrínseca. Ufa! É verdade! Nós cansamos também! E Como superar o grande cansaço? A ideia deste artista não é encontrar respostas… Por isso mesmo, Fukushima escolhe multiplicar as perguntas, transcrevê-las em linguagem corporal, revelando aos poucos um potente vocabulário que, certamente, ainda tem muito o que escrever.